O segredo e o seu duplo

Em um dos quinze capítulos do filmeCounting” (Contando, 2015)[1], de Jem Cohen, a calçada de uma rua em Manhattan está tomada por pessoas falando nos celulares. Cohen capta imagens de uma vitrine onde aparecem refletidos os pedestres com seus telefones, carros em movimento e transeuntes atravessando uma esquina. O som da cidade sobrepõe-se a uma gravação em áudio de uma audiência no Congresso norte-americano sobre vigilância doméstica no governo Obama. Em um depoimento, o Diretor de Inteligência Nacional dos Estados Unidos, James Clapper, nega a um senador que a Agência de Segurança Nacional (NSA) recolhe dados de milhões de americanos.[2]

Graças a whistleblowers [denunciantes] como o ex-analista da NSA, Edward Snowden, que revelou ao mundo documentos confidenciais que comprovam a existência de programas de vigilância e espionagem global realizados pela Agência de Segurança Nacional em conluio com empresas privadas, sabemos que o testemunho de Clapper é falso. Monitorar tornou-se uma atividade não somente restrita a casos de investigação em que um governo ou organizações militares decidem interceptar a comunicação entre pessoas e grupos suspeitos. Hoje, com a abordagem estratégica da vigilância, um pais como os Estados Unidos pode controlar toda a cadeia de informações transmitidas em e-mails, redes sociais, vídeos e conversas telefônicas, e espionar absolutamente todo mundo, “independente de serem inocentes ou culpados”[3], sem a necessidade de obter permissões judiciais para isso. O certo voyeurismo público de Cohen, registrando o cotidiano refratado nos vidros das janelas, mostra, com efeito, uma duplicidade que corre como um segredo em nossas vidas. O espelho labiríntico por onde aparecem cidadãos que estão, sem saber, tendo suas vozes e mensagens armazenadas e vigiadas, expõe a condição vulnerável de nossa privacidade e coloca em questão o que não sabemos e até onde podem chegar os procedimentos de controle executados por militares e associados corporativos que se utilizam de tecnologias cada vez mais sofisticadas – da leitura biométrica à espionagem na internet e os drones controlados à distância sobre um território de guerra.

Elites políticas desejam celebrar a “transparência” de seus processos como sinônimo de “boa governança”, mas essa intenção carrega sempre um paradoxo: quando mais se diz que o poder é “transparente” nas sociedades democráticas, mais ainda se sente a necessidade de se dizer que ele não é[4], nem que para isso seja necessário vigiar para não deixar passar nada e mentir para ocultar o que o poder esconde. O segredo e a mentira deliberada são usados “desde a história documentada como meios legítimos para alcançar fins políticos”.[5] A mentira de um diretor de um órgão de inteligência, ou o autoritarismo de um Estado que impõe sigilo para limitar o acesso público a documentos que podem comprovar irregularidades e abusos de toda sorte cometidos por seus administradores, são justificados como métodos “legais” usados para manter a ordem de uma sociedade. Por outro lado, o que é ameaçador sobre essa sociedade, diz Slavoj Žižek, não é a exposição de nossa intimidade secreta como um grande Big Brother, mas o perigo que está no modo como os serviços de inteligência interpretam os nossos possíveis segredos:

Não há nenhuma agência estatal capaz de exercer tal controle – não porque eles não sabem o suficiente [sobre nós], mas porque eles sabem demais. A quantidade absoluta dos dados é enorme, e apesar de haver programas complexos para a detecção de mensagens suspeitas, computadores que registram bilhões de dados são bastante estúpidos para interpretá-los e avaliá-los corretamente. Erros ridículos onde pessoas inocentes são listadas como potenciais terroristas ocorrem necessariamente – e isso faz o controle estatal de comunicações ainda mais perigoso. Sem saber por que, sem fazer nada ilegal, todos nós podemos ser listados como potenciais terroristas […]. Devemos temer que não temos segredos, que as agências estatais sabem de tudo, mas devemos temer ainda mais que elas falham neste esforço.[6]

Na vida social, o segredo produz uma imensa ampliação da vida e nem sempre os seus conteúdos podem ser eficientemente examinados. O segredo é um saber oculto ao outro, uma poderosa forma de conhecimento social que oferece a possibilidade de existência de um “segundo mundo” que se manifesta no cotidiano.[7] Este segundo mundo do segredo reforçando o mundo que se evidencia na vida constitui um importante espaço de ativismo e de defesa dos direitos humanos. Em um momento onde as pessoas começam a discutir a importância da memória e de seus registros, a veracidade dos fatos em relação a assuntos como o acesso a documentos sigilosos através de plataformas virtuais como o WikiLeaks[8], a militarização da cultura e de teorias radicais por governos, exércitos e agências de inteligência, a desinformação orquestrada pela mídia corporativa e o surgimento de teorias conspiratórias, torna-se fundamental contemplar o significado da dimensão pública do segredo como objeto de discussão e análise, evidenciando acima de tudo a invisibilidade dos usos e os abusos orquestrados pelo poder da vigilância sobre nós e de um apagamento perverso de uma memória política.

A natureza inacessível ou restrita de um segredo deve ser repensada como algo aberto à investigação. Em outras palavras, se aqueles que estão no poder sentem-se capazes de apoderar-se de nossas mensagens e monitorar as nossas ações, nós também temos o direito de denunciar e expor suas agendas ocultas. A vida ordinária refletida nas janelas parece ganhar uma outra dimensão quando incorporada na presença de um “duplo segredo” entre o público e o privado – quando você sabe o que eles sabem, mas eles não sabem o que você sabe. Revelar o que o poder sabe através de sua exposição e no trabalho de ativismo de redes transnacionais não é destruir completamente um segredo de Estado, mas mostrar o que governos e corporações desejam ocultar acrescentando a essa perspectiva de denúncia um novo ponto de vista ainda mais crítico, tentando mudar assim as regras do jogo.

NOTAS

[1] Sobre o filme “Counting”, de Jem Cohen, ver: http://jemcohenfilms.com/counting.

[2] Um excerto dessa cena de “Counting” está disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Jg1I8c48CZ0.

[3] Julian Assange, et al. Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 64.

[4] Cédric Vincent. “Mapping the Invisible: Notes on the Reason of Conspiracy Theories” (2006). Disponível em: http://archive.sarai.net/files/original/a64955901c18177123d3239053e0f92e.pdf.

[5] Hannah Arendt. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 15.

[6] Slavoj Žižek. “Freedom in the clouds”. In: Peter Weibel (ed.). Global Activism: Art and Conflict in the 21st Century. Cambridge: MIT Press, 2015, p. 238.

[7] Georg Simmel. The Sociology of Georg Simmel. Illinois: The Free Press, 1950, p. 330.

[8] https://wikileaks.org.

André Mesquita | outubro de 2015.
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