Foto: Critical Art Ensemble

Arte-Ativismo: interferência, coletivismo e transversalidade

Um estudo cuidadoso sobre os atuais desdobramentos da arte contemporânea no campo político deve, necessariamente, considerar a atuação dos coletivos de arte e suas afinidades com as recentes mobilizações sociais. A junção das esferas da produção e do consumo, legitimadas pelo neoliberalismo, pela globalização capitalista e pelas estratégias pós-fordistas de organização e flexibilização do trabalho, intensificaram nos anos de 1990 resistências mundiais, movimentadas pelos chamados “Dias de Ação Global”. Protestos transnacionais, como o Carnaval Contra o Capital, realizado em 18 de junho de 1999 em Londres e nos centros financeiros de cerca de 40 cidades espalhadas pelo mundo, e seis meses depois, a disseminação dessa experiência nos protestos realizados em Seattle – entre 30 de novembro e 3 de dezembro de 1999 – contra a Organização Mundial do Comércio[1], traçaram os novos caminhos do ativismo contemporâneo inserido em uma linguagem festiva e visual.

De certa forma, tais manifestações nem sempre são vistas como arte, mas desempenham em suas funções uma tarefa similar ao apropriar-se de configurações estéticas, potencialmente criativas, sobre o social, o simbólico e o político. O que nos interessa aqui é salientar a forma como as recentes práticas artísticas coletivas se articulam com o ativismo. A vontade de se realizar ações, intervenções e performances na cidade, fragmentada por contradições sociais e econômicas e pelo aparato mercadológico da publicidade e da mídia, está intimamente ligada com a introdução de novos modos de engajamento político no cotidiano, transformando os artistas em agentes ativos e catalisadores de experiências, integrando arte e vida.

É por meio de uma estética da resistência que muitos dos artistas-ativistas têm trabalhado, reinterpretado o conceito de “cidade subjetiva” que engaja tanto os níveis mais singulares da pessoa quanto os níveis mais coletivos.[2] E essa re-singularização do coletivo tratou de intervir de forma polissêmica na produção cultural e semiótica do capitalismo, recuperando o espaço através de ações poéticas e efêmeras, ou pelo uso de táticas midiáticas, intervenções no circuito das galerias e alterações nos sistemas oficiais de informação, denunciando problemáticas locais e mundiais. No campo artístico, a escolha de um ativismo cultural se define pelo emprego de imagens efetivas e o uso dos meios culturais em busca de mudança social.[3]

Seja qual for a sua forma de mediação, toda a intervenção é uma prática que tem, predominantemente, efeitos políticos e uma tomada de posição. Muito desse trabalho tem ocorrido nas grandes metrópoles de diversos países e é constituído por redes de colaboração entre produtores culturais, grupos autônomos e comunidade local. Em São Paulo, as ações de dezenas de coletivos, como Esqueleto, BijaRi, Centro de Mídia Independente, Experiência Imersiva Ambiental, Elefante, Catadores de Histórias e A Revolução Não Será Televisionada, com os movimentos de moradia no Centro de São Paulo, constituem uma das realizações mais importantes dessa atual convergência artística com o ativismo político. As intervenções, produzidas por meio de cartazes, vídeos e performances realizadas no edifício localizado na Avenida Prestes Maia[4], onde 468 famílias vivem desde novembro de 2002 sob constante ameaça de despejo, tornaram-se ações culturais diretas na maior ocupação da América Latina, chamando a atenção para as condições de uma área visada pela crescente especulação imobiliária, políticas de revitalização e pelo crescente processo de gentrificação. Essa atuação tática, praticada com a eventual cooperação dos moradores, descreve perfeitamente o que Michel de Certeau expõe em A Invenção do Cotidiano (1980): a tática como hábil utilização do tempo, das circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de duração e ritmos heterogêneos.[5] É da conjunção entre artista e práticas sociais que as novas formas estéticas de autogestão são ampliadas, convertendo-se em ferramentas de trabalho comunitário e ultrapassando uma mera transmissão de dados informativos e históricos, ou apenas satisfazendo a demanda de uma “novidade artística” comprometida com a tendência do momento.

Outros coletivos brasileiros também estão atentos a outras formas de reapropriação do espaço urbano. O Grupo Poro, de Belo Horizonte, e Grupo de Interferência Ambiental, de Salvador, têm realizado intervenções e performances de caráter político e efêmero; ações que dialogam, de forma direta ou indireta, com um rico referencial conceitual, teórico e visual vindo das experiências artísticas entre os anos de 1960 e 1980 no País, como os trabalhos de Cildo Meireles, Hélio Oiticica, Artur Barrio, Paulo Bruscky e, mais especificamente, com as intervenções urbanas em São Paulo, em fins da década de 1970 e início dos anos 1980, representadas por grupos como 3Nós3, GEXTU, Manga Rosa e Viajou Sem Passaporte. Trabalhos como Jardim (2004), do Grupo Poro, chamam a atenção para a tática de se recriar um espaço abandonado plantando flores de papel celofane vermelho nos canteiros das ruas de Belo Horizonte. Jardim é uma intervenção que ocupa o território com uma grande sutileza poética, ao espalhar “manchas de cor no cinza indistinto da cidade”.[6]

Atuação social, coletivismo, relação entre práticas estéticas e vida cotidiana são preocupações antigas nos domínios da arte. As redes colaborativas dos coletivos apresentam similaridades e influências de diversas práticas artísticas e ativistas mapeadas no século XX. Essas referências podem ser encontradas, por exemplo, nas vanguardas no início do Século XX, como o Dadaísmo, o Surrealismo e o Produtivismo/Construtivismo russo, passando por outras manifestações do pós-guerra, como o Grupo CoBrA (1948-1951), a Internacional Situacionista na França (1957-1972, e sua contribuição com pelo menos duas práticas bastante difundidas entre os coletivos: os métodos de détournement e a psicogeografia); a contracultura nos anos sessenta (representada por grupos como o Provo holandês, os Yippies, Black Mask e os Diggers nos Estados Unidos);  o Grupo Fluxus; os “trabalhadores da arte” dos coletivos Guerrilla Art Action Group e Art Workers’ Coalition; os samizdat (publicações marginais distribuídas na Rússia e Leste Europeu a partir dos anos de 1960) e grupos como o Collective Actions realizando suas excursões pelo interior da União Soviética; Tucumán Arde na Argentina; o método cut-up de William Burroughs e Brion Gysin; a Mail Art; o Punk; o graffiti; o Neoísmo; grupos de ativismo artístico como CADA (Chile), Gas-Tar / CAPaTaCo e iniciativas como o Siluetazo na Argentina durante os anos de 1980; coletivos norte-americanos surgidos na década de oitenta e com enfoque nas questões de gênero, raça, memória e desigualdade, como ACT UP, Gran Fury, Group Material, Guerrilla Girls, PAD/D e REPOHistory; as festas de rua do Reclaim the Streets!; os festivais de mídia tática nos anos de 1990 e sua contribuição para o uso político e recombinante da tecnologia; o Culture Jamming e suas táticas de intervenção em outdoors publicitários; a produção de teatros de guerrilha e a veiculação de pranks[7] midiáticos na imprensa, direcionando suas críticas para as questões do consumo, o trabalho e os interesses obscuros das grandes corporações (trabalhos realizados por organizações e artistas norte-americanos e canadenses, como Billboard Liberation Front, Jorge Rodriguez-Gerada, Carly Stasko, Ron English, Adbusters Media Foundation, Joey Skaggs, Reverend Billy and The Church of Stop Shopping e The Yes Men).

Com esta extensa história, a arte-ativista encontrou, em diferentes períodos, vestígios, experimentações e significados que superassem a sua recodificação pelo capital, interferindo no campo da cultura como um local de ruptura e conflito. O ativismo artístico é também uma resposta crítica ao culto modernista do artista individual e de sua separação social, suprimindo a contemplação passiva e estritamente espetacular de uma obra. Não é à toa que a diluição da autoria vem sido constantemente reafirmada e desconstruída por esses grupos como uma estratégia de garantia da eficácia intervencionista em esferas antagônicas, seja por meio de um trabalho anônimo, ou baseado na utilização de nomes múltiplos e mitos coletivos, como Karen Eliot, Luther Blissett ou Monty Cantsin.[8]

Atuar coletivamente significa agir no campo da transversalidade, o que significa produzir formas de subjetividade, trabalhar com a cooperação e o predomínio de interconexões múltiplas, fluídas e mutáveis. É necessário ressaltar que essa transversalidade implica, por exemplo, em possíveis articulações com a tecnologia e a ciência, assim como a produção de conhecimento autônomo, dialogando com públicos específicos ou de diferentes camadas sociais. Pelos menos dois exemplos recentes desse tipo de prática podem ser explicitados. O primeiro é uma prática de engenharia reversa, desenvolvida a partir das combinações entre arte, ciência e tecnologia e traduzida em uma obra na qual o artista, como pesquisador amador, interfere intencionalmente em um sistema oficial controlado “pelo outro”. Esse tipo de trabalho encontra-se na instalação/performance Free Range Grain (2003/2004), do coletivo norte-americano Critical Art Ensemble com a artista e pesquisadora Beatriz da Costa. Usando o espaço de uma exposição de arte realizada na Áustria, o grupo montou um laboratório portátil de testes de Organismos Geneticamente Modificados (OGMs), convidando os visitantes a participar da performance trazendo alimentos supostamente transgênicos e realizando testes de identificação. Para o Critical Art Ensemble, o trabalho objetiva examinar a relação entre as commodities alimentícias e as restrições quanto a importação de alimentos pela União Européia. Da mesma forma que barreiras econômicas são impostas por questões de segurança, recai a suspeita de que medidas de precaução não impedem a entrada de produtos transgênicos nos países europeus. Um trabalho como Free Range Grain interfere nas premissas de como a ciência deve progredir, reelaborando um sistema ou uma linguagem transformada em acontecimento social ou político. “Quando o Critical Art Ensemble insere suas próprias técnicas científicas caseiras no campo dos alimentos geneticamente modificados, o faz a fim de desafiar o papel dos indivíduos, das corporações e dos sistemas científicos que determinam as regras do jogo da biotecnologia”.[9]

O segundo exemplo encontra-se nos termos de uma produção interessada em mapear o monopólio da informação agenciada pelo regime de produção da sociedade capitalista contemporânea. O coletivo francês Bureau d’Études tem produzido cartografias como The World Government (Governo Mundial)[10], que evidenciam redes de influência, sobretudo no poder tecnológico, midiático, burocrático e econômico, revelando os interesses das grandes corporações no controle da produção do entretenimento, do consumo, da biotecnologia e da indústria farmacêutica, enquanto outros mapas do grupo chamam a atenção para redes de conhecimento alternativos de poder e movimentos sociais. As complexas linhas e estruturas de poder abordadas por esses mapas levantam não só a possibilidade de uma pesquisa autônoma sobre esses assuntos, como também sintetizam aquilo que Fredric Jameson chama de “mapeamento cognitivo”, no sentido de permitir “a representação situacional por parte do sujeito individual em relação àquela totalidade mais vasta e verdadeiramente irrepensável, que é o conjunto das estruturas da sociedade como um todo.”[11]

É na invisibilidade dessa “totalidade mais vasta” abordada por Jameson que a concepção pós-modernista de um capitalismo voltado para a informação se alastra, na ascensão da mídia, da sociedade do espetáculo, da indústria da propaganda, da construção de marcas globais e da criação de “mundos”. Mas é também nesse campo da “interferência cultural”, ou Culture Jamming, traduzido pelo rompimento simbólico e pelo desvio da linguagem corporativa, tanto no nível espacial (esfera pública), como no nível subjetivo (meme, ou unidade de transmissão de cultura), que certos coletivos buscam trabalhar, convertendo-se em manipuladores políticos de mensagens e signos.

Foi no espaço de uma famosa praça em Viena, a Karlsplatz, que o coletivo europeu 0100101110101101.org. montou um container de 13 toneladas associado à megacorporação de calçados Nike. O Projeto, intitulado Nike Ground, anunciava a alteração do nome da praça para “Nikeplatze a instalação de um monumento gigante simbolizando um swoosh vermelho.[12] Durante outubro de 2003, o coletivo organizou performances, criou um site sobre o trabalho[13] e veiculou campanhas publicitárias anunciando a construção de monumentos Nike nas principais capitais do mundo. Dias depois, a imprensa local recebeu centenas de reclamações vindas dos moradores locais, perplexos com a instalação do container e com a “venda” da praça para uma multinacional. A Nike ameaçou entrar com uma ação legal, acusando os realizadores do projeto de infringir as leis de copyright. A intervenção, obviamente, não passou de um prank artístico e midiático com a finalidade de assinalar a cooptação da arte e do espaço pelas estratégias corporativas de marketing, usando a cidade como “um palco para uma enorme performance urbana, um tipo de show teatral para um público inconsciente, produzindo uma alucinação coletiva capaz de alterar a percepção das pessoas da cidade em sua totalidade e de forma imersiva.”[14] Intervenções como a Nike Ground mostram como as representações da realidade e da verdade são parciais e motivadas, considerando também a atuação dos cidadãos e suas ligações afetivas com os espaços, reagindo à configuração corporativa do território urbano.

O processo de privatização do espaço público é somente uma das consequências de uma arquitetura globalizada. Mas esse espaço, para os ativistas, não é apenas determinado pelas estratégias corporativas de poder, mas também da maneira como algumas táticas são aplicadas nesses domínios. Em Barcelona, o coletivo Yomango é uma dessas iniciativas de inserção ativista dentro dos aspectos do consumo, ordenando uma livre circulação de bens e de desejos, opondo-se à comodificação das subjetividades reproduzidas pelo capitalismo e sua produção de identidades reificadas. O coletivo, que pretende tornar-se uma organização global, é composta por artistas, estudantes, ativistas e outros interessados nas ações de mangar, gíria espanhola para “afanar”.[15] Performances como Yomango Tango, realizada nos dias 20 e 21 de dezembro de 2002 em solidariedade à revolta argentina que, naquele ano, comemorou um ano de existência, são intervenções criativas e formas de “desobediência social” bem-humoradas, conduzidas pela natureza de gestos subversivos. Dentro da loja de uma rede mundial de supermercados, localizada no centro de Barcelona, os artistas-ativistas do Yomango realizaram um protesto festivo que incluiu casais dançando tango ao redor das prateleiras e o furto cuidadoso de garrafas de champanhe. No dia seguinte, as garrafas foram abertas em uma agência do banco Santander (um dos grupos financeiros responsáveis pela crise argentina) aos gritos de “que se vão todos! Começando pelas multinacionais e pelos bancos.” As ações desses coletivos mostram como diferentes linguagens criativas podem ser reinventadas através de uma prática social participativa e autônoma. O ativismo cultural sintetiza o hibridismo entre arte e política, criando territórios de conhecimento, zonas autônomas temporárias e intervenções, além de propor uma maior liberdade de criação para fora do sistema institucional de arte.

NOTAS

[1] Para uma informação mais detalhada e uma linha cronológica dessas manifestações, ver: NOTES FROM NOWHERE (eds.). We Are Everywhere: the Irresistible Rise of Global Anti-capitalism. Londres: Verso, 2003.

[2] GUATTARI, Félix. Caosmose: Um Novo Paradigma Estético. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. p 170.

[3] WALLIS, Brian (ed.). Democracy: Project by Group Material. Seattle: Bay Press, 1990. p.8.

[4] O imóvel, que já foi utilizado pela Secretaria das Finanças há cerca de 15 anos, foi comprado num leilão pelo empresário Jorge Hamuche, que abandonou o prédio e deve quase cinco milhões de reais em IPTU aos cofres públicos. Ainda assim, o juiz da 25ª Vara Cível de São Paulo concedeu uma liminar de reintegração de posse do imóvel, desconsiderando o direito à moradia dos ocupantes, e até mesmo um relatório da ONU, que declara que “o governo do município de São Paulo, através da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano e da COHAB, deve promover a reforma do prédio da Av. Prestes Maia para fins de habitação de interesse social, para atender o objetivo da desapropriação do prédio feita pelo município”.

[5] CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes. 1994. p. 102.

[6] PORO. Desvios no Discurso. Catálogo da mostra na Galeria de Arte da Cemig. Belo Horizonte: abril e maio, 2005.

[7] “Trote” seria uma tradução aproximada para o termo prank. Artistas como Joey Skaggs veiculam notícias falsas na mídia ou, no caso do The Yes Men, produzem sites-paródia de grandes corporações, como o site da Organização Mundial do Comércio criado pelo grupo (http://www.gatt.org), e depois são chamados para entrevistas em universidades e redes de televisão fingindo ser representantes oficiais de organizações.

[8] Para mais informações sobre nomes múltiplos, ver: HOME, Stewart. Neoism, Plagiarism & Práxis. São Francisco: AK Press, 1995 e o Projeto Luther Blissett: http://www.lutherblissett.net. O uso de nomes múltiplos é também uma tática disseminada no campo político. A insurreição Zapatista em Chiapas é, nesse sentido, um exemplo de como o nome de seu porta-voz, Subcomandante Marcos, tornou-se um nome coletivo na expressão “todos somos Marcos”.

[9] THOMPSON, Nato. “Trespassing Revelance”, in SHOLETTE, Gregory e THOMPSON, Nato (eds.). The Interventionists: Users’ Manual for the Creative Disruption of Everyday Life. Cambridge: MIT Press, 2004. p. 17.

[10] http://bureaudetudes.org/wp-content/uploads/2010/01/worldGov2004gris.pdf

[11] JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Ática, 1996. p. 77.

[12] Swoosh simboliza tanto a marca do tênis Nike, como a gíria norte-americana para “movimento no ar”.

[13] http://www.0100101110101101.org/home/nikeground/website/index.htm

[14] http://www.t0.or.at/nikeground/pressreleases/en/000

[15] Mango é também o nome de uma famosa grife de roupas na Espanha.

André Mesquita | março de 2006.
Imagem: Critical Art Ensemble. Free Range Grain, 2004.
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